Eles não procuram emprego, são disputados no mercado, têm salário de dois dígitos, “acima da primeira dezena”, e se dão ao luxo de escolher trabalhar em empresas que conciliem qualidade de vida e propósitos sociais. São os profissionais voltados para ciência de dados, engenharia de redes e inteligência artificial (IA), um privilegiado grupo de trabalhadores que não sabe o que é desemprego.
Não tem sido fácil para o diretor da InovaHC, Marco Bego, manter as equipes que vem montando em seu laboratório de IA no Instituto de Radiologia do Hospital das Clínicas de São Paulo, o maior da América Latina.
O InovaHC existe desde 2015, mas o laboratório começou depois, após um projeto de sucesso de diagnósticos de Covid-19 com a ajuda de um algoritmo de análise de imagens, no início da pandemia, quando faltavam testes.
— O responsável pela equipe era um economista formado na USP, que adora dados. Uma startup o levou. Formei a segunda equipe, não passou uma semana, e a engenheira de dados avisa: “fui convidada por uma empresa do ramo de agro. Nem vou pedir para fazer uma contraproposta. É muito mais do que você me paga”. A demanda é grande, são salários de dois dígitos, acima da primeira dezena — diz Bego.
Pelas estimativas da Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) e de Tecnologias Digitais, a Brasscom, serão necessários pelo menos 159 mil profissionais dessas áreas por ano no país até 2025 para suprir a demanda.
A Confederação Nacional da Indústria (CNI) estima que o país precisará qualificar 470 mil trabalhadores em TI até 2025. O Brasil forma 53 mil no ensino superior de áreas afins por ano.
— Precisaremos ter uma formação em alta escala de profissionais de TI e IA — afirma Affonso Nina, presidente executivo da Brasscom.
‘Big data’ lidera demanda
A demanda das empresas por profissionais de IA, embora tenha explodido em 2023 com a popularização da tecnologia, ainda não é a maior desse mercado. A análise de grandes bancos de dados (big data) é a área que mais absorve mão de obra. IA está em quarto lugar, atrás de administração de dados na nuvem e na área de webmobile (internet móvel).
— IA vai ganhar mais espaço, mas existem outras tecnologias de mãos dadas, como big data, nuvem, segurança de informação, que não são separáveis. A IA vai permeando todas as soluções de TI do mercado — explica Affonso Nina.
Nem sempre a formação dos mais disputados começou na tecnologia. A carreira de Bruno Kunzler é um exemplo. De uma família de engenheiros, ele começou a faculdade ao 16 anos, mas se frustrou. A técnica pura da engenharia não o atraiu.
Buscava uma área de estudo mais ampla, com o impacto que as inovações provocam. Começou a cursar Economia, especializando-se em estatística, dados, econometria, e se encontrou.
— A Economia me deu o arcabouço teórico para trabalhar com dados — define.
O primeiro trabalho foi numa ONG voltada para design de serviço público, após ter passado por um instituto de pesquisa onde mergulhou mais ainda no impacto social das novas tecnologias. O salário no início de carreira foi de R$ 12 mil. Essa ONG foi chamada pela InovaHC para ajudar no projeto do algoritmo para detecção de Covid-19 pela imagem médica.
Entre 2020 e 2021, o InovaHC conseguiu contratá-lo por R$ 15 mil mensais. Não demorou muito para uma startup buscá-lo, oferecendo R$ 19 mil.
Mas ele acabou voltando ao InovaHC, onde atualmente recebe R$ 25 mil. Poderia estar ganhando mais — as remunerações em institutos sem fins lucrativos são mais baixas —, mas o estresse das startups o afastou do setor privado.
— É muito estresse para investidor ficar mais rico — diz o especialista em dados, que também vê o propósito do atual emprego como um fator que pesou em sua escolha. — Aqui, você trabalha um milhão de horas para as pessoas não morrerem, com menos estresse.
A farmacêutica Poliana Ferreira fez mestrado em Toxicologia e Neuromodulação e assim começou a pesquisa com dados. A carreira acadêmica foi interrompida com o nascimento da filha Manuela, hoje com 10 anos. Foram três anos em casa, quando começou a estudar tecnologia. Autodidata, ela conta que se apaixonou por biotecnologia:
— Há muita coisa (para instrução digital) disponível aberta ou de baixo custo. Fiz cursos abertos para a comunidade do Senai, aprendi a programar. Não sabia exatamente aonde aquilo ia me levar. Meu interesse era me conectar com a área de saúde.
Terminado o mestrado e com os cursos que fez, ela foi contratada em uma função de engenharia de dados numa consultoria internacional. Poliana, que começou a carreira em 2009 como gerente de farmácia, ganhando R$ 2.400, acumulou experiências na área digital e hoje atua como gerente de dados em tecnologia numa empresa ligada ao agronegócio, com salário de R$ 24 mil.
— O aprendizado ativo em tecnologia colaborou para percorrer esse caminho. Se você tem qualidade, conhecimento, o mercado está te querendo. As empresas é que me encontram, nunca procurei. Bem diferente da época que estava só na Farmácia — diz Poliana, que usou várias plataformas on-line, como a coursera.org e Data Science Academy (DSA).
A procura por qualificação na área de tecnologia está em alta. Levantamento do Senai mostra que, de janeiro a outubro deste ano, 10.170 estudantes se matricularam em cursos de aperfeiçoamento, extensão, técnico, graduação ou pós-graduação relacionados a IA. Entre 2021 e 2022, o número mais que triplicou, saindo de 2.385 para 8.209.
Pierre Lucena, diretor presidente do Porto Digital, um dos principais parques tecnológicos do país, localizado em Recife, diz que a IA é a bola da vez. O grande desafio é encontrar pessoas que trabalhem com tecnologia e números, saibam analisar grandes volumes de dados e desenvolver softwares.
— A necessidade é de quem sabe estatística em alto nível e programação para montar grandes plataformas de análise de dados. Passa a ter necessidade de múltiplas formações — diz. — É difícil encontrar pessoas com essas habilidades.
Por isso o InovaHC resolveu montar um curso de tecnólogo em dados de saúde para formar seu pessoal. Lucena alerta que, ao mesmo tempo, tecnologias novas como a IA tendem a acabar com funções de média complexidade, como analistas financeiros, arquitetos:
— Essas ferramentas disruptivas criam um novo mercado e matam o anterior. É preciso começar a pensar em redução na quantidade de horas de trabalho. Se não houver uma regulação para isso, quem empregar vai se apropriar sozinho desse imenso ganho de produtividade.
Avaliação invertida
Johnny Taira chegou a cursar dois anos de jornalismo, mas acabou se formando em sistemas de informação e hoje trabalha com desenvolvimento de software numa varejista. Aos 29 anos, dez de carreira, ganha R$ 14 mil por mês. Deu-se ao luxo de escolher trabalhar de casa e também para qual empresa prestaria serviço. Não é fácil passar na seleção dele.
— Cultura de trabalho em equipe, remuneração competitiva com mercado, equilíbrio entre vida profissional e pessoal são coisas que levo bastante em conta. Tem que ser uma empresa preocupada com pautas sociais, com participação ativa em programas que fomentem recortes minoritários, como pessoas com deficiência, mulheres, negros, LGBTQIA+, que se comprometa com o bem-estar das pessoas. Isso é um tópico importante — diz.
Mas ele admite que o mercado estava melhor há dois anos, quando era mais procurado por recrutadores e empresas de todos os portes e setores, inclusive do exterior:
— Este ano foram poucas entrevistas, comparado com o passado.
G1